Como funciona o sistema de castas na Índia
Poucos temas geram tanta curiosidade em um estrangeiro na Índia quanto o sistema de castas. Saciar essa curiosidade, no entanto, não é tarefa fácil: considerado tabu pela maior parte dos indianos, não é um assunto que você vai puxar na mesa de jantar com aquela família que você conheceu sem causar constrangimento. Perguntar a casta de alguém é indelicado, para não dizer outra coisa. Acreditem, eu já vi isso acontecer e morri de vergonha alheia.
O sistema de castas vigora no país há muitos e muitos séculos e sua origem é incerta. Apesar de ter origem na fé hindu, foi incentivado e até mesmo reforçado pelos britânicos durante a colonização, transformando-o em algo muito mais rígido.
Hoje, existem cerca de 3 mil castas na Índia, o que é um confusão e tanta pra gente entender. Mas essas castas todas podem ser divididas em quatro grupos, que eram as castas originais:
Brahmin (Brâmanes): A casta mais alta, é formada por pensadores e letrados, pessoas consideradas próximas aos deuses. Entre as profissões exercidas por eles estão as de sacerdotes, professores e filósofos. Na mitologia hindu, foram criados a partir da cabeça de Brahma.
Kshatriya (Xátrias): São os guerreiros, nasceram dos braços de Brahma. Exercem profissões como as de soldados, policiais e administradores.
Vaishya (Vaixás): São os comerciantes, nasceram nas pernas de Brahma.
Shudra (Sudras): São camponeses, artesãos e operários. Nasceram dos pés de Brahma.
Declarado ilegal em 1950, na época da independência, o sistema chegou bem vivo ao século 21 em forma de tradições, desigualdade social e preconceito. Isso foi possível porque, ao contrário da escravidão, o sistema de castas trabalha de uma forma muito mais sutil e informal.
Sim, hoje em dia não é mais possível criar, por exemplo, clubes exclusivos para membros de uma certa casta, mas as profundas desigualdades sociais e preconceitos originados por séculos de divisão garantem que a exclusão continue a acontecer.
Para nós, o sistema parece indecifrável e confuso, mas ele está bem arraigado na cultura dos indianos. Eles conseguem saber a qual casta uma pessoa pertence apenas pelo sobrenome. Foi por isso que os Sikhs, religião monoteísta muito popular no norte da Índia e que rejeita a divisão de castas, adotou para todos os seus membros um mesmo sobrenome: Singh para homens e Kaur para mulheres.
Na Índia urbana, o sistema vem perdendo força com os anos, ainda que muito lentamente. Casamentos entres as três castas superiores, embora ainda não extremamente comuns, já não chegam a ser malvistos. No entanto, ainda continua valendo como lei em vilarejos e na Índia rural, onde vivem 857 milhões de indianos.
A consequência mais óbvia desse sistema é a perpetuação da desigualdade social. Mas, pelas coisas que eu vivi lá, eu diria que há mais. Nunca em um ambiente de trabalho eu senti a arrogância dos chefes quanto na Índia. Humilhações públicas eram ocorrências rotineiras no escritório. Era como se aquela posição tivesse sido designada a eles pelo próprio Brahma e não fosse fruto de um punhado de privilégios que eles tiveram desde o nascimento.
Claro que isso não é um regra absoluta. Há muita gente bem nascida (aos olhos do sistema) que vê a ignorância presente nessa divisão e luta contra as castas na Índia. Mas a minha experiência me mostrou que grande parte os membros das castas superiores ainda acredita que eles são merecedores natos do bom e do melhor e que são mais dignos de respeito que todos.
São pessoas difíceis de lidar, que não aceitam ser contrariadas e que acham que todos devem baixar a cabeça para o que dizem. Uma vez, em uma festa na minha casa, um playboyzinho chegou a chamar o Rafa para a briga porque ele queria impor a música que iria tocar e o volume do som. Quando nos recusamos a ceder, ele simplesmente tirou o som da tomada. Repetindo: era a minha casa, não a dele.
Por outro lado, membros de classes inferiores se resignavam a ouvir abusos que no Brasil dariam um ótimo caso de assédio moral. Se você ouviu a vida inteira que é um lixo inferior, uma hora você passa a aceitar. Além disso, se rebelar contra a “vontade de deus” tem consequências graves na fé hindu. Viva sua vida de dalit ou sudra humildemente e, quem sabe, na próxima encarnação você volta por cima da carne seca.
Dalits, os intocáveis
Se os sudras surgiram dos pés de Brahma, os dalits tiveram uma origem ainda menos nobre: foram criados a partir da poeira em que o deus pisou. Tratados como párias, excluídos da sociedade, os dalits não têm casta e são considerados impuros. Para eles são guardados os trabalhos que os outros indianos se recusam a fazer por considerarem indignos: recolher lixo e limpar banheiros, por exemplo.
Considerados portadores de impurezas por onde quer que passem, eles vivem um sistema opressivo digno de um apartheid. Um dalit não pode se sentar à mesa com membros de outras castas ou usar os mesmos pratos e copos. Em casas mais conservadoras, eles possuem uma entrada especial que só permite que eles cheguem até o banheiro e a área de coleta de lixo, sendo proibidos de colocar os pés na casa principal.
Como o sistema hoje é cultural e não oficial, alguns poucos dalits conseguiram escapar de seu destino e ascender socialmente. No entanto, como cidadãos de um país que também sofre com extrema desigualdade, nós sabemos que quebrar o ciclo da miséria não é fácil. Para reparar os males causados por séculos de um sistema cruel, o governo indiano oferece cotas nas universidades e outros programas sociais, como a concessão de microcrédito, que visam a inserção dos párias na sociedade.
Um grupo minúsculo deles, aproveitando a abertura econômica do país nos últimos vinte anos, até mesmo enveredou pelo empreendedorismo e alcançou seus milhões de dólares, criando um fenômeno conhecido como Dalits Millionaires (link em inglês). Mas ainda existe um longo caminho a percorrer. Apenas 30% dos dalits é alfabetizado (a média do país é de 75%) e a discriminação contra crianças dalits nas escolas acaba fazendo com que elas abandonem as aulas. Eles também são as maiores vítimas de violência e crimes de ódio.
Hoje, os dalits que conseguem escapar da sina de exercer as profissões indignas são aceitos na convivência de outros indianos. Contudo, mais que qualquer outra união entre castas, casar-se com um dalit é um ainda tabu tremendo.
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